Delírios Noturnos

À noite, ao fechar meus olhos, faço viagens delirantes a outras realidades. Vou à lugares mesclados de fantasia e realidade. Lugares por onde já passei e outros que só existem na minha imaginação. As histórias são ainda mais mescladas, formando pinturas que transformarei em exposição, nesta galeria. Bem vindos aos meus Delírios Noturnos.

À frente de seu espelho ela observava cada detalhe: os longos cabelos castanhos estavam adornados com apenas uma pequena presilha posicionada atrás da cabeça, prendendo poucos fios que antes insistiam em incomodar seu rosto. Rosto maquiado basicamente para corrigir pequenas imperfeições e um gloss. Brincos com strass, brilhantes, seus favoritos. As mão, agitadas, revisavam com um leve toque toda sua roupa, especialmente separada para aquele dia. Uma produção simples com uma babylook branca, uma mini-saia (não micro) branca com alguns rabiscos coloridos e botinhas pretas quase a altura do joelho. Algumas pulseiras cromadas e a aliança. Se atentou a ela por alguns segundos, girando-a em seu dedo, e num lamento quase silencioso volta a se olhar no espelho, tentando recuperar a autoconfiança que aquela aliança tinha o poder de lhe tirar, mas algumas borrifadas de um doce perfume a transportam para um raro momento só dela.
O silêncio da casa traz uma paz, quase nunca presente.
A bolsinha simples em cima da mesa, recebe o pequenino gloss e o celular, finalizando a revisão antes da saída.
O barulho da rua revela a chegada de algumas pessoas e a voz de sua irmã se destaca, do lado de fora da porta. "Está na hora" pensa ela, quase como um alívio, misturando alegria e ansiedade.
Ela gira a chave, já na porta e dá uma última olhada na casa, pensando se não esqueceu nada, nem uma janela aberta, nem o fogão aceso, nada...
- Vamos Camila! Estamos em cima da hora! - Carolina lhe apressa, sem precisar.
O grande evento ecológico que apresentariam era ao lado, com a entrada a poucos metros de distância.
Os quarteirões ali não eram regulares, formando quadrados ou retângulos em perfeita harmonia, não. Vistos de cima eram apenas pequenos blocos, juntos, separados, formando um labirinto de ruas. Sua rua era um grande "L" e sua casa ficava bem em frente à pequena curva. Ao sair de casa, ela olha para seu lado direito, como se procurasse alguém, e depois segue em frente, pela calçada, rindo e conhecendo alguns dos amigos de sua irmã. Margarida, muito parecida com as irmãs, já era conhecida desde pequenas, Fabiano também, alto e magro, com seus cabelos loiros e longos, sempre com seu violão à mão e hoje não seria diferente. Os novos amigos eram dois rapazes e três moças, que se conheceram a caminho do evento, e que também o apresentariam.
As risadas e brincadeiras ficaram misturadas ao barulho que vinha do outro lado do muro, do pequeno parque que começava daquele ponto. Na esquina, estava a entrada destinada a eles. Junto ao portão uma escada, a do grande palco montado ali, para as atividades e atrações daquela tarde ensolarada, com uma leve e fresca brisa que vinha das árvores do parque.
Um a um subiu a escada e pegou seus respectivos microfones.
Camila, a mais velha, pegou as fichas com as informações e foi cumprimentar o público que já se amontoava pelo parque. Os outros amigos já estavam lá, agitando o público com a música. Assim que a música acaba, é Camila quem abre o evento, apresentando ela mesma e seus companheiros de palco.
Primeiro sua irmã, Carolina, seguida de Fabiano e Margarida. Depois Samuel, um rapaz negro, de uma simpatia ímpar e um sorriso farto, cabelo bem curtinho e sua estatura era muito próxima da de Fabiano, porém maior que de seu amigo Rafael, que fez questão de ser apresentando junto com o amigo. Mais tímido que seu amigo, Rafael ainda fez sua saudação ao público de forma alegre e animada, mas não tão empolgado. Seu cabelo levemente cacheado, castanho claro, sob o sol se tornava quase loiro e tirando a altura, poderia até se passar por irmão de Camila e Carolina, como Margarida, por terem biótipos muito parecidos.
As outras três garotas, Ana, Luciana e Juliana também foram apresentadas juntas. Ana era uma morena de cabelos pretos muito bem arrumados, assim como os loiros cabelos de suas duas amigas. No maior estilo "patricinha" de ser as três ainda se lançaram numa espécie de coreografia de apresentação. Todos aplaudidos, era hora de anunciar as atrações da tarde e chamar a primeira banda a tocar.
A tarde foi avançando, as atrações foram se apresentando, entretendo o público e os apresentadores se divertiam dançando e cantando as músicas junto às bandas, sempre chamando ao motivo do evento, que era em prol da ecologia, da sustentabilidade e da reciclagem de materiais.
Em uma das atividades, Camila sugeriu que cada um, na medida do possível, abraçasse uma árvore. Ela mesma se dirigiu a uma das pequenas árvores colocadas no palco, mas Samuel, muito brincalhão, se colocou à frente da árvore um instante antes de Camila abraçá-la, sendo assim abraçado por ela. Claro que ela entendeu e lhe deu uma bronca de brincadeira, tirando-o do caminho e enfim abraçando sua árvore.
Enquanto uma das atrações mais populares se apresentava, Camila, que sempre procurava ficar na lateral ao fundo do palco, para não interferir nas performances de cada banda, foi surpreendida por Rafael, que passou por trás dela, ao ritmo da música, passando seu rosto pelos cabelos dela e sua mão pela cintura, a tirando para dançar. Naquele instante parecia que o mundo havia ficado mais lento. Ele, às costas dela, segurou firme com sua mão esquerda a mão esquerda dela e com sua mão direita a impulsionou, para que ela girasse delicadamente e assim que parou, de frente um com o outro ele a puxou. Puxou o corpo dela para junto do seu e ao se olharem, foram aqueles dois segundos em que o mundo pára e que você mergulha em alguém pelos olhos, chegando ao coração. E você sabe que sim, porque você sente ele chegar ao seu, quando seu coração, depois de parar aqueles dois segundos, parece explodir de tanto bater, como se fosse sair pela boca. A respiração volta quase ofegante e os cheiros quase que se misturam. Aquele movimento tão firme que lhe trouxe para tão perto fica frouxo, sem reação e ninguém diz nada, porque não consegue. As mãos se soltam sem reagir e um passo atrás os devolve ao mundo que continuou girando sem que percebessem.
Sem graça, os dois se afastam um pouco e, sem saber do que tinha ocorrido, logo seus amigos chamam, para continuar o trabalho.
Depois disso a troca de olhares era inevitável, ela procurava se concentrar, mas durante as brincadeiras, os olhos se procuravam. Eles sabiam que se observavam, eles sentiam. Impossível não sentir aquele calor.
A noite foi chegando mais fresca que a tarde.
No intervalo antes da última atração, Camila percebe uma pequena situação ao fundo entre Rafael e Luciana, que estava pedindo por algo que ele não queria, de alguma forma, ceder a ela.
Tentando se aproximar desfarçadamente, ela foi caminhando de costas lentamente, fingindo estar saindo de cena para um breve intervalo, com microfone à mão, apoiada na cintura, ela apenas ouve ele lhe dizer um último "não", antes de sentir novamente aquela mão em sua cintura. O coração disparado, ela chega a estremecer e tenta agir naturalmente.
- Está precisando de alguma coisa, Rafa? - olhando pra ele e sorrindo, rezando para o coração não sair pela boca e para que não esteja tão vermelha quanto imagina.
Ele sorri de volta.
- Vem comigo - ele sussurra pegando-a pela mão e levando até a entrada.
Os dois se sentam no último degrau da escada do palco, no canto, ao lado do portão de entrada por onde passaram mais cedo, como desconhecidos.
Ele segura firme em suas costas puxando-a de novo para perto, tão perto a ponto de sentirem suas respirações. Os olhares inquietos, desenham o rosto um do outro. Ela passa o dedo no rosto dele, começando da testa e descendo devagar pelo nariz e parando apenas um instante na boca e continua sua descida pelo queixo, pescoço até o peito dele.
- Você sabe que eu não posso, me ajuda, eu não posso, mas...
Ele encosta o rosto e vai virando devagarinho, até que lhe dá um beijo no rosto tão doce e suave que ela quase sente o gosto nos seus lábios.
Num suspiro quase aliviado ela sussurra, como se não tivesse forças para falar.
- Me desculpa... eu não posso... eu queria...
- Eu também, me desculpa, eu sei, não posso fazer isso com você – ele segura o rosto dela com a mão e eles trocam mais uma vez aquele mesmo olhar que fez o mundo parar mais dois segundos.
De repente ela olha para a rua, e vê alguém vindo cambaleando pela calçada que faz seu coração disparar de desespero.
- Eu tenho que ir... agora!
Ela se levanta apressadamente e atravessa o cruzamento em “T” e para numa casa transformada em barraca de salgados para atender aos participantes do evento. Ela para e tenta ver o homem, que agora está parado no guichê de fichas. Ela só consegue ver a mão direita dele, pele morena, dedos deformados de tão inchados, ela se sente ainda mais desesperada. Rafael entrou na casa onde ela parou e pede a sua tia, moradora da casa, que ajude a moça.
Camila pergunta se há alguma casa que ela possa passar ao outro lado do quarteirão. A senhora a indica uma casa próxima, onde mora sua irmã, que tem passagem para o outro lado do quarteirão. Camila agradece e segue sem olhar para trás. Ela entra na casa chamando pela dona, que demora a atender. Ouvindo aquela voz conhecida, arrastada pela bebida e se aproximando:
- Quem ama... perssdoa, não? Eu vou levar flossres e vai ficar tsssudo bem.
Antes que ela possa pedir ajuda à dona da casa, ela se senta na poltrona da sala de costas para a porta, tremendo, ao ouvir que ele entra no portão da mesma casa.
- O... quê... – a dona da casa sem entender muito bem, fica sem reação àquela situação estranha, e Camila só quer passar pela porta em frente a ela, que dá acesso ao quarteirão seguinte.
No instante que Camila está a ponto de chorar e se revelar, Rafael chega, solicitando ao homem que volte para a festa, pois ali é apenas uma residência. O homem pede desculpas e se retira, mas olhando atentamente a moça sentada de costas, que ele viu saindo da festa.
- E ela moshhhço?? – pergunta o bêbado.
- Ela mora aqui. Vamos, por favor. – E ele ajuda o senhor a sair e faz um sinal para sua tia ajudar a moça.
Ainda meio confusa ela vê a moça se debulhar em lágrimas assim que a porta se fecha.
- O..bri...gada...
- Fique calma e me conte o que está havendo. Tome um copo d’água.
- Eu preciso sair pela outra porta... sua irmã me disse que eu poderia... por favor... eu tenho que chegar antes dele... senão não sei...
- Ah! Entendi... Mas ele não vai perceber sua roupa? Ele ficou te olhando antes de sair. Espere, vou pegar algo. – e a mulher se dirigiu ao corredor, voltando instantes depois com uma saia longa e uma blusa – tome, vista por cima e ele não vai reconhecer. Amarre seu cabelo também.
Camila agradecida faz tudo que a mulher falou.
- Por favor, você tem um papel e uma caneta?
- Sim, eu tenho, também leve estes salgados, caso vocês cheguem juntos, você pode dizer que veio pegar na festa.
Camila pegou o papel, enxugou os olhos e escreveu, ainda trêmula, no pedaço de papel.
- Por favor, quando o Rafael voltar, entregue pra ele isso. Ele me ajudou muito hoje, vocês me ajudaram muito hoje. Espero poder agradecer logo.
- Não se preocupe. Pode sair, a porta está aberta – a mulher dá uma espiada pela janela e vê Rafael com o bêbado, ainda perto da casa – o Rafael está destraindo o homem, você terá tempo.
- Obrigada!
- Vai... vai logo....
E Camila sai pela porta do fundo, apressada, pensando qual o melhor caminho pra chegar em casa.

Delírios...

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